Daniel Miele Amado
André Miele Amado
A crítica é essencial no debate científico, somente com ela é possível identificar as limitações ou erros dos modelos científicos e evoluir na Ciência. Em oposição ao debate está a disseminação de mentiras, ou as fake news em inglês, que geram confusão, desinformação, discórdia e diminuem o nível do debate científico. O propósito das fake news não é o debate, mas a aniquilação do outro, daquele que pensa diferente, ao difamar sua imagem. Nesse breve texto, iremos discorrer sobre o debate das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde-PICS, que infelizmente está sob ataques de fake news.
Primeiramente, temos que definir o significado do termo PICS. Este termo, “Práticas Integrativas e Complementares em Saúde - PICS”, foi criado na instituição da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS - PNPIC em 2006. O termo se refere a uma parte do que a Organização Mundial da Saúde - OMS agrupa como Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas – MTCI. E segundo a organização internacional, as Medicinas Tradicionais se referem as práticas de saúde, sistematizadas ou não, que fazem parte do conhecimento acumulado e produzido de cuidado em saúde dos povos originários. Já as Medicinas Complementares, são práticas
que não estão totalmente integradas no sistema médico “convencional ou majoritário”.
Desta forma, a PNPIC não institui as Medicinas Tradicionais(que seriam dos povos originários do Brasil), tão pouco, institui todo o universo das Medicinas ou Terapias Complementares. Esse diferencial é fundamental para entender de quais práticas estamos falando em cada momento. Ainda mais quando grupos avessos as PICS utilizam termos como “terapias alternativas” como forma de difamar e construir uma narrativa contra a política pública de saúde.
A OMS, que em sua própria sede possui uma seção voltada especificamente as Medicinas Tradicionais Complementares e Integrativas, defende a integração das MTCI nos sistemas oficiais de saúde, inclusive afirma como fundamental para garantir uma cobertura universal de saúde com qualidade. Este órgão internacional ainda estabelece em suas diretrizes, o reconhecimento e a garantia da qualidade, segurança e eficácia dessas práticas. A defesa e a promoção das MTCI pela OMS incentivaram o aumento de 4x do número de países com políticas nacionais em MTCI, saindo de 25 países em 1999, para 98 em 2018. O que representa metade dos 198 países do mundo, tendo políticas de MTCI. 109 possuem leis ou regulações e 124 implementaram regulações em fitoterapia (Who Global Report On Traditional And Complementary Medicine 2019). Tal ampliação também foi resultado de políticas públicas destes países e investimentos, incluindo a pesquisa.
A pesquisa no campo das PICS é essencial garantir a qualidade, a segurança e a eficácia destas práticas. Nas bases de dados se observa um grande aumento no número de pesquisas científicas na área. E podemos observar também, um aumento nas fontes de financiamento públicos de pesquisa na área das MTCI em diversos países, tais como os Estados Unidos, China, Índia, Austrália, só para citar alguns. Importante ressaltar a iniciativa chamada de CAMBRELLA, de 2010 à 2012, iniciativa da União Europeia com pesquisa na área das MTCI que uniu 16 instituições de 12 países europeus (https://cam-europe.eu/ ).
No Brasil a formulação desta política pública, a PNPIC, se deu a partir de uma construção histórica de mais de 20 anos. Iniciando com a 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986, seguindo por todas as conferências nacionais subsequentes, juntamente com a constituição de um grupo de trabalho no Ministério da Saúde para formulação de uma proposta em 2003, aos debates no Conselho Nacional Saúde, culminando com a publicação da PNPIC em 2006. Estas duas décadas de debate envolveu inúmeros gestores e trabalhadores da saúde, pesquisadores, docentes e usuários, resultando em uma política pública que foi democraticamente constituída e elaborada. Um ponto fundamental dessa política é em suas diretrizes estar o fomento à pesquisa, de forma a garantir a segurança, qualidade e eficácia das PICS. Como já ressaltamos, segundo a OMS as MTCI são essenciais para a cobertura universal e acessível de serviços e ações de saúde.
Contudo, o sucesso na institucionalização e crescimento das MTCI, no Brasil e no mundo, possuem uma resistência de diversos grupos. A crítica é essencial para o avanço da Ciência, todavia, não é o que acontece. Tais iniciativas contra as MTCI costumam ser extremamente midiáticas, por vezes com argumentos pouco fundamentados, mas que são elaborados com roupagem de ciência. Além disso, não abordam os diferentes lados e olhares de uma temática, essencial para um debate saudável. Os argumentos são frágeis, sendo facilmente contestados, são na verdade fake news. Infelizmente, o objetivo não é ampliar o debate ou realizar críticas, mas mover a opinião pública, de governantes e gestores pela desinformação. Infelizmente, tais grupos contra as MTCI são um fenômeno mundial.
A crítica é algo fundamental para o avanço da ciência, pois é a partir de diferentes olhares, contrapontos, que se formam elementos para evoluir a qualidade das pesquisas. As críticas aos estudos científicos permitem dividir a boa pesquisa da de má qualidade. Assim, a Ciência cresce a partir da própria contraposição. De forma análoga, observamos no campo das MTCI, que no enfrentamento e debate para sua “aprovação” vem melhorando nos seus modelos, argumentos e até protocolos de pesquisa. O sucesso desse embate permitiu o reconhecimento científicos de diversas MTCI, tais como a acupuntura, meditação, yoga, musicoterapia, entre outras. Sendo incluídas, a partir de evidências científicas, nos protocolos de cuidado de diversos países e fazem parte de protocolos baseados em evidências científicas de instituições e organizações de saúde renomadas. Por exemplo o Colégio Americano dos Médicos que traçou recomendações a partir da revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados e controlados e revisões sistemáticas, recomenda a acupuntura, tai chi, yoga e minfulness para diferentes dores (Noninvasive Treatments for Acute, Subacute, and Chronic Low Back Pain: A Clinical Practice Guideline From the American College of Physicians). https://www.acpjournals.org/doi/10.7326/m16-2367
Apesar do sucesso e dos reconhecimentos de diversas organizações nacionais ou internacionais, há o crescimento das fakenews contra as MTCI. Estas se apresentam com cara de jornalismo, onde alguns pseudo-institutos de ciência e influenciadores digitais, vem produzindo materiais com o único intuito de desinformar sobre as PICS. O que é lamentável, pois faltam trabalhos sérios de crítica, e na área da saúde, existem procedimentos clínicos, estéticos e cirúrgicos que não possuem nenhuma evidência cientificas e são utilizados corriqueiramente. Em casos mais graves, existem tratamentos e medicamentos que possuem evidência de ineficiência e risco para a saúde, mas seguem sendo utilizados como únicas opções, no entanto, em muitos casos as PICS poderiam ser utilizadas com maior eficiência e menor risco.
No próprio campo das PICS a crítica permite evoluir metodologias de pesquisa, construir novos protocolos que consideram a amplitude de cuidado e efeito das PICS. Protocolos que levam em consideração as especificidades das PICS, isto é, que difiram de protocolos reducionistas aplicados a medicamentos. Neste sentido, a crítica é fundamental, bem-vinda e desejada.
A busca pelo avanço científico no campo das MTCI, permitiu o desenvolvimento dos Mapas de Evidências das PICS, produzidos pelo Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde-BIREME em parceria com o Consórcio Acadêmico de Saúde Integrativa (https://mtci.bvsalud.org/pt/mapas-de-evidencia-2/ ). Os mapas de evidências são uma matriz gráfica das evidências sobre intervenções de sistemas médicos e métodos terapêuticos das MTCI para problemas de saúde específicos. Os mapas foram elaborados por uma busca sistemática de artigos nas principais bases de dados, consequente seleção e caracterização. Na base de dados Web of Science, em 2009 foram publicados 2000 artigos na área de Medicina Integrativa e Complementar, com esse número aumentado para mais de 4000 em 2018. (Ding Z, Li F. Publications in Integrative and Complementary Medicine: A Ten-Year Bibliometric Survey in the Field of ICM. Evid Based Complement Alternat Med. 2020 Oct 6;2020:4821950. doi: 10.1155/2020/4821950. PMID: 33082824; PMCID: PMC7559521.)
Um dos estudos mais importantes na área da MTCI foi o da descoberta da Artemisinina pela professora Dr.a Tu Youyou, que foi agraciada com o Prêmio Nobel de Medicina de 2015. A Artemisinina é um poderoso antimalárico. A Dr. Tu trabalhava na Academia Chinesa de Medicina Tradicional Chinesa e utilizou para sua pesquisa textos clássicos da medicina chinesa e visitou inúmeros praticantes da medicina tradicional chinesa em todo território chinês. Um excelente exemplo de como as Medicinas Tradicionais podem auxiliar na descoberta da cura de diversas doenças.
Dito tudo isso, há uma certa comicidade no malabarismo argumentativo que os grupos contra as MCTI fazem. Tentando passar a ideia de que as 29 práticas instituídas no SUS não tem nenhuma evidência científica. Como se não bastasse, são contraditórios em seus próprios argumentos, apresentando estudos científicos e afirmando que nenhum têm qualidade. O pior é se colocando como a “voz da ciência”, utilizam como argumento uma “busca rápida”, sem aplicar nenhum protocolo de avaliação da qualidade metodológica desses estudos. Caso, fossem sérios, fariam um importante trabalho, considerando que na Ciência e, especificamente na área da saúde, precisamos de críticas, conquanto as fakenews são contra o avanço científico. Desta forma, são necessários debates abertos, com amplo direito as partes se manifestarem, de forma honesta e seguindo rigorosamente o método científico. Assim enquanto ciência e área da saúde, precisamos de críticas, enquanto sociedade não precisamos de fake news.
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