Daniel Miele Amado
André Miele Amado
A atuação no campo das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde e Terapias Complementares-PICS, vem crescendo no Brasil, no entanto, sua regulamentação é muito recente e gera diversas dúvidas. Com base nos dez anos que atuei à frente do Ministério da Saúde, na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS – PNPIC, pretendo elucidar nesse texto as dúvidas mais comuns relativas a regulamentação das PICS. Para facilitar a abordagem de tal tema, este foi dividido em 5 tópicos, a saber: Formação no campo das PICS e das terapias complementares; reconhecimento das terapias; reconhecimento de profissão/ocupação; atuação no SUS; currículo para atuação no SUS; forma de contratação pelo SUS.
1. A regulamentação das PICS
A atuação no Brasil no campo das Terapias Complementares é antiga, já que muitas dessas práticas estão imbricadas com as culturas locais. De forma institucional, ela iniciou-se com a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS-PNPIC instituída em 2006. Esta política segue as recomendações da Organização Mundial da Saúde-OMS, que reconhece a importância das Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas - MTCI e recomenda sua integração aos sistemas oficiais de saúde.
Cada país é soberano para definir suas leis e regulamentações. No caso do Brasil, não existe um órgão, ou entidade, que regulamente as práticas terapêuticas de saúde permitidas ou não no país. No entanto, este controle acontece majoritariamente de três formas, pelos conselhos profissionais, pelo Ministério da Saúde e formação profissional adequada.
Cada profissão de saúde regulamentada por lei responde a seu respectivo conselho, que define a atuação profissional. Os respectivos conselhos das profissões de saúde definem o código de ética da atuação profissional, e devem fiscalizar seu cumprimento. No entanto, ao definir as normas, por meio de resoluções, da atuação profissional relativos à sua categoria específica, também exercem um caráter regulatório. Um determinado conselho somente pode regular sua própria categoria profissional, isto é, não podem regulamentar a atividade de outras profissões ou ocupações.
O Ministério da Saúde define quais práticas são permitidas/normatizadas para serem realizadas no SUS a partir de políticas públicas de saúde. O Ministério da Saúde institui a PNPIC, que é uma política nacional de saúde. Esta estabelece as normativas relativas às 29 PICS no âmbito do SUS. Importante ressaltar que a PNPIC não tem caráter resolutivo e normativo para nenhuma prática fora do SUS. Neste sentido, quando se fala de PICS, somente se referem as práticas normatizadas e presentes na PNPIC. Outras “terapias complementares, tradicionais, ou populares”, não são sinônimos de PICS, segundo a política de saúde nacional.
Quanto a regulamentação dos praticantes, a Constituição Federal, documento maior de organização de nossa sociedade, define:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
(...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”
Assim, a Constituição Federal estabelece que se não houver uma lei específica que impeça uma atuação profissional ou ocupacional e desde que não infrinja outras questões legais, tal atuação profissional ou ocupacional é permitida.
No Brasil existem algumas profissões de saúde regulamentadas. Estas devem seguir estritamente o que está na Lei, é o caso dos médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, nutricionistas, entre outros. Estas profissões possuem leis federais que regulamentam o seu exercício, limitando a atuação profissional à somente as pessoas que atendem aos requisitos da lei. Já o jornalismo, por exemplo, é uma profissão que pode ser exercida por diversas pessoas, mesmo que não tenham graduação em jornalismo.
Existem profissões ou ocupações que não possuem leis federais regulamentando-as, porém que são reconhecidas pelo Ministério do Trabalho. Este, criou a Classificação Brasileira de Ocupações-CBO, cujo objetivo é “demonstrar as atividades profissionais/ocupacionais no país”. Alguns exemplos de ocupações reconhecidas no campo das PICS e terapias complementares são Arteterapeuta, Musicoterapeuta, Naturólogo, Técnico em Acupuntura, Quiropraxista, Massoterapeuta, Terapeuta Holístico.
Quanto a formação cabe ao Ministério da Educação a sua normatização. Este define os critérios para a formação de graduação, pós-graduação, técnicos e tecnólogos. Contudo, o Ministério da Educação não defini critérios para a formação com carga horária inferior as de nível técnico, sendo chamados de cursos livres.
Muitas práticas presentes na PNPIC são ensinadas em cursos de pós-graduação, graduação e cursos técnicos, que atendem as normas educacionais vigentes. Contudo, muitas PICS e terapias complementares, hoje no brasil, são de formações livres, com carga horária inferior a 800 horas, o número mínimo de horas para uma formação técnica.
Em relação aos produtos de saúde, estes são normatizados pela Agência Nacional de Vigilância em saúde.
Assim, a partir destes pontos iniciais referentes a regulamentação das PICS, podemos no aprofundar nas questões de formação em PICS e atuação no SUS.
2. Formação no campo das PICS e das terapias complementares
A OMS orienta seus países membros para que a formação dos profissionais em MTCI tenha uma formação mínima adequada para sua integração nos sistemas oficiais de saúde. Esta formação mínima está descrita em documentos chamados de benchmarks, produzidos pela própria OMS a partir da participação de especialistas de vários países do mundo. Como exemplos de becnhmarks temos os de Ayurveda, Naturopatia, Osteopatia, Medicina Tradicional Chinesa, Acupuntura e Tuiná.
Os benchmarks são importantes para a discussão da formação integrada dos profissionais em MTCI a outros profissionais da área da saúde e ao próprio sistema nacional de saúde. Nos benchmarks são estabelecidos, em média, uma formação de 2500 horas para os profissionais sem uma formação prévia na área da saúde. Sendo cerca de 30% da carga horária total em disciplinas da área da biomedicina. Para que os profissionais da MTCI consigam dialogar com os demais profissionais de saúde.
Em relação aos profissionais que já tem uma formação na área de saúde, são estabelecidos, dois tipos de regime: a formação completa retirando as disciplinas da biomedicina já estudadas na graduação da área de saúde convencional; ou formações menores, específicas para aplicação de uma abordagem daquela MTCI em sua atuação profissional, como acupuntura para fisioterapeutas, médicos, enfermeiros, etc.
A OMS estabelece a formação em disciplinas da Biomedicina como um critério importante para uma formação adequada numa atuação multiprofissional. A partir desta consideração, a formação voltada para o SUS também deve atender uma formação sólida em Biomedicina. Discernindo se a formação em MTCI é para um público sem formação prévia na área da saúde, ou caso contrário, a carga horária e disciplinas devem ser adequadas para o conhecimento prévio deste público.
3. Tipos de formação
A formação no Campo das PICS, podem ser livres, em nível técnico, graduação ou pós-graduação.
No campo dos cursos livres temos uma grande diversidade de cargas horárias, considerando que o MEC não estabelece uma formação mínima. No entanto, mesmo sem prerrogativa de lei ou norma, as associações de algumas dessas práticas em PICS têm sugerido uma formação mínima adequada. Cujo reconhecimento social dessas associações é importante. Como exemplos destas associações que recomendam uma formação mínima temos as de Terapia Comunitária Integrativa, Aromaterapia, Biodança e Bioenergética.
Já no caso dos cursos técnicos, estes devem estar em acordo com o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, estabelecidos pelo MEC e pelo Conselho Nacional de Educação. Atualmente, existem os cursos Técnicos de Terapia Holística e de Massoterapeuta, os dois com formação mínima de 1200 horas. Outro ponto importante é de que é exigido pelo MEC pelo menos 50% de carga horária presencial. Isso é fundamental para o aprendizado de muitas técnicas e para a qualificação do cuidado realizado pelos profissionais.
Os cursos de graduação têm o objetivo de formar profissionais/ocupações. Estes cursos devem ser reconhecidos pelo MEC. Atualmente, existem graduações específicas de Naturologia, Acupuntura, Arteterapia, Musicoterapia e Quiropraxia que podem ser acessadas no próprio site do MEC.
Para os profissionais de saúde regulamentados, o Conselho Nacional de Saúde aprovou a Resolução nº 569 de 8 de dezembro de 2017, que estabelece:
(...)
Art. 2º Aprovar o Parecer Técnico nº 300/2017, em anexo, que apresenta princípios gerais a serem incorporados nas DCN de todos os cursos de graduação da área da saúde, como elementos norteadores para o desenvolvimento dos currículos e das atividades didático-pedagógicas, e que deverão compor o perfil dos egressos desses cursos.
Art. 3º Aprovar os pressupostos, princípios e diretrizes comuns para a graduação na área da saúde, construídos na perspectiva do controle/participação social em saúde, e apresentados, sinteticamente, nos incisos a seguir:
f) os pressupostos e fundamentos da promoção da saúde e seus determinantes, da Educação Permanente em Saúde (EPS), e das Práticas Integrativas e Complementares (PIC) como elementos constituintes da formação, reafirmando o conceito ampliado de saúde;
Com isso, diversos cursos de graduação na área da saúde, tem adequado seus currículos para a inclusão das PICS na formação.
Pós-graduações, são cursos que podem ser realizados por profissionais de graduação, com o objetivo de ampliar ou complementar a formação inicial.
Considerando as exigências do MEC para a formação técnica no campo das PICS, este entende que é necessário ter no mínimo 50% de carga horária presencial. Isto é, o MEC não reconhece nas PICS a aquisição de habilidades e competências de cuidado em saúde totalmente à distância. Tal critério também deveria ser considerado aos demais tipos de formações, como a livre, graduação e pós-graduação.
4. Atuação no SUS
O Ministério da Saúde é responsável pela regulamentação das práticas no SUS, além disso, também é responsável pela definição das políticas públicas nacionais, que orientam os estados e municípios. Todavia, é importante ressaltar que os estados e municípios, tem autonomia para definir suas políticas locais.
Assim, a PNPIC, define diretrizes nacionais de sua implantação, não exigindo uma política estadual, ou municipal. A vantagem dos estados e municípios poderem estabelecer suas políticas locais é de trazerem as características próprias da sua região para sua política de saúde. Por exemplo, até 2017, o Distrito Federal e o município de Recife normatizavam mais práticas de PICS do que a política nacional.
O Ministério da Saúde regulamenta as práticas presentes no SUS, porém não lhe cabe regulamentar/reconhecer as profissões que irão atuar no SUS. Esta atribulação é exclusiva do Congresso Nacional. Sendo assim, a PNPIC prevê o “Desenvolvimento da PNPIC em caráter multiprofissional, para as categorias profissionais presentes no SUS, e em consonância com o nível de atenção”.
A definição das profissões de saúde reconhecidas e que fazem parte das políticas nacionais de saúde é realizada pelo Conselho Nacional de Saúde-CNS. Este, representa a maior instância de Controle Social do SUS. Lhe cabendo definir as diretrizes dos planos nacionais de gestão, e de fazer o acompanhamento das ações do Ministério da Saúde.
O CNS a partir da resolução nº 218, de 06 de março de 1997 resolve:
“I – Reconhecer como profissionais de saúde de nível superior as seguintes categorias:
1. Assistentes Sociais ;
2. Biólogos;
3. Educadores Físico;
4. Enfermeiros;
5. Farmacêuticos;
6. Fisioterapeutas;
7. Fonoaudiólogos;
8. Médicos;
9. Médicos Veterinários;
10. Nutricionistas;
11. Odontólogos;
12. Psicólogos;
13. Terapeutas Ocupacionais;
As políticas de saúde do Ministério da Saúde e a destinação de recursos financeiros federais devem seguir as definições do CNS. Desta forma, as políticas nacionais são voltadas as categorias reconhecidas pelo CNS. Contudo, isso não tira a autonomia de estados e municípios na destinação de recursos, e formulação de políticas prevendo outras categorias profissionais/ocupação, a partir de normas e definições locais e de critérios do Controle Social correspondente. Desta forma, diversos municípios têm ampliado as categorias profissionais/ocupação presentes em suas políticas de saúde.
Dito isso, para uma ampliação das profissões/ocupações a nível nacional, somente é possível com uma ampla discussão no Conselho Nacional de Saúde.
5. Currículo para atuação no SUS
As formações profissionais para atuar na área privada devem seguir as recomendações do MEC, contudo as formações livres não possuem parâmetros curriculares definidos por esse órgão. Exigindo a construção de consensos e parâmetros por associações, ou outras instituições de renome, como os próprios conselhos profissionais, para uma formação em PICS de qualidade.
Ao considerar a atuação no SUS, os parâmetros curriculares também deveriam seguir as diretrizes da OMS. Em particular, o de que qualquer profissional que atue com PICS deva ter uma formação sólida em biomedicina, independente se a profissão/ocupação, em questão, é regulamentada ou não.
O conhecimento de biomedicina é importante para a inserção do profissional de MCTI junto as equipes de saúde, e para que existe uma troca e integração do cuidado. Por exemplo, um profissional formado somente na medicina Ayurvédia, sem a formação em biomedicina, terá dificuldades de dialogar com os outros profissionais sobre o caso daquele individuo, gerando um cuidado separado, fragmentando a atuação multiprofissional e integral da equipe e do serviço de saúde. É preciso ter uma linguagem comum, que seria fornecido pelo conhecimento em biomedicina.
6. Forma de atuação no SUS
Pensando para além da formação, uma questão importante são as formas de ingresso no SUS. Todo serviço público prevê a realização de concursos para oferta de qualquer serviço que seja permanente. Para situações emergenciais ou temporárias, o órgão público pode realizar contratações de pessoa física ou jurídica para oferta daquele serviço.
Todo concurso deve ser realizado com critérios impessoais, e explicitando quais “cargos” serão oferecidos. A definição dos possíveis cargos segue a Classificação Brasileira de Ocupação. Desta forma, podem ser realizados concursos para profissões/ocupações que já possuem um CBO definido. Porém, muitos profissionais que atuam com as PICS não possuem sua profissão definidas na CBO, principalmente os de cursos livre. Ainda há o caso de profissionais que se definem com uma CBO equivocadamente, como é o caso de muitos que se definem como Terapeutas Holísticos.
Observando o caso dos Terapeutas Holísticos, segundo a CBO, este necessita de um curso técnico, infelizmente, tal condição não é a realidade da maior parte dos profissionais hoje. Assim, caso o município venha a ofertar um concurso para terapeuta holístico, é provável que a maior parte dos candidatos não tenham os critérios exigidos pela CBO ou pelo MEC. A mesma questão se aplica a contratos temporários, onde o município deve realizar uma seleção pública, e definir critérios impessoais e atendendo as exigências da CBO e do MEC.
Conclusão
A PNPIC define as práticas presentes no SUS, não lhe cabendo definir as profissões, ou os respectivos CBOs. A PNPIC já vem com uma discussão e história longa no Ministério da Saúde, todavia, ainda necessita ainda avançar muito no Ministério do Trabalho e no Ministério da Educação. Infelizmente, essas dificuldades administrativas e de regulação, precisam ser debatidas. Um debate aberto e amplo é necessário para podermos avançar em um modelo de cuidado integral e centrado na pessoa.
Assista à vídeo-aula sobre esse assunto: https://www.youtube.com/watch?v=CAjVT3GA2ac
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